Confesso que a pergunta “você trabalha com o quê?” me causou um certo desconforto durante vários anos. Talvez, pelo simples fato de eu ter que explicar a resposta.
Poderia facilmente ser “sou cozinheiro, sou advogado, sou fiscal da Receita Federal…”. Mas não, nunca foi algo objetivo. A resposta sempre veio sucedida de expressões como “Ahn?”, “Quê?”, “Como?”. E isso, com 19-20 anos, me incomodava. A sensação era que a minha profissão não se encaixava na cabeça das pessoas, como aqueles brinquedos de criança, onde peças circulares não passam pelos buracos quadrados.
Lembro que, lá no final do milênio passado, eu fui até uma franquia no segmento de fast food, com um kit de acesso à Internet embaixo do braço (jovens, não queiram saber o que é isso) para instalar o Netscape e o Trumpet Winsock, em um 486 com Windows 3.11. Uma atendente me anunciou como “chegou o cara do computador”; e lá fui eu, ativar mais uma conexão dial-up. Pedi que o pessoal mantivesse o fone no gancho e iniciei aquele clássico processo, disquete por disquete.
Quase ao mesmo tempo, chegou um represente comercial do Guia Telefônico (Páginas Amarelas, talvez). Motivado, ele explicava os benefícios de anunciar no seu produto. Enquanto eu trocava o disquete do drive, e ele abria o “lançamento 1997”, na versão pocket, um luxo.
Como eu sempre tive a boca maior do que o juízo, disse: “você precisa de uma página eletrônica, não de uma página amarela”. Os dois me olharam. “Ahn?”, “Quê?”, “Como?”.
Eu, rapaz ingênuo, tentei explicar — e mais uma vez, lá fui eu tentar forçar círculos pelos quadrados. Abri o Cadê, o GeoCities e o site da NASA. Eles riram, afinal, é muito mais fácil procurar no guia, acomodado ao lado do telefone de mesa.
20 anos depois, é fácil ver como a Internet naturalmente transformou quadrados em círculos. Tudo hoje se relaciona. Um cozinheiro pode ter formação em Direito e ainda prestar consultoria tributária. E, no final do dia, o guia telefônico realmente está junto ao telefone, não? Porém acomodado em outra interface, mais rápida, funcional e arredondada.
Não há melhor exemplo do que isso para definir o que significa Transformação Digital. Seja em nomenclaturas de cargos; ou na maneira como interagimos entre nós. Vivemos uma era de círculos. E pude ver, na prática, tudo isso na construção da minha carreira.
Ainda me sinto o “cara do computador” a cada novo desafio e projeto que chega aqui no escritório. As expressões “Ahn?”, “Quê?”, “Como?” se tornaram combustível no meu dia a dia e, quando me perguntam “você trabalha com o quê”, eu respondo, sem medo de ser feliz: transformo quadrados em círculos.
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